As técnicas para mergulhar dentro de si mesmo são muitas, incluindo o Eneagrama, uma das minhas especialidades
Em agosto deste ano, Usain Bolt, a lenda do atletismo, se aposentou com oito ouros olímpicos e três recordes mundiais. Mas o que levou Bolt a encerrar sua carreira nas pistas? Autoconhecimento. Isso mesmo. Ele foi capaz de reconhecer sua limitação física e perceber que seu corpo não aguentaria mais manter o ritmo de antes. No caso do atleta, a percepção sobre seu físico foi relevante, mas isso faz parte de uma percepção sobre si mesmo que pode ser muito mais abrangente, incluindo nosso lado racional e emocional.
Geralmente, chegamos a um momento da vida em que queremos entender por que nosso comportamento é diferente dos outros. “Que características eu tenho que diferenciam meu ser, agir, pensar e falar dos demais? Que filtros fazem de mim o que sou?”. É um dos recorrentes questionamentos que escuto no meu consultório. Perguntas como estas são um impulso comum para o autoconhecimento. A busca interna não começa em um belo dia no qual você acorda “inspirado para se conhecer mais”. O processo de autoconhecimento é gerado por dúvidas, dor, sofrimento – sensações que incomodam e, por isso, fazem alguém querer se entender melhor.
Há meios diferentes de buscar-se. Há quem se identifique com religiões, que podem servir de guias para essa procura, ou com a filosofia, que nos faz questionar muito sobre “quem sou?”. Há também quem prefira observar o próprio corpo, atitudes, emoções e comparar-se com os outros – esse pode ser um caminho autônomo para o autoconhecimento. “Por que sou assim? Por que eu tenho isso e os outros não?”. Ou o contrário.
Porém, acredito que não seja fácil a busca por autoconhecimento sem um mentor ou instrutor. A ideia de um guia, uma religião, uma filosofia ou um terapeuta é sempre a mesma: ajudar a pessoa a parar um pouco, a ver a própria vida de fora, em perspectiva, e evitar que ela internalize toda cultura, informações e história familiar como verdades absolutas. O objetivo é questionar-se sobre tudo isso: “É assim, mas será que tem de ser?”.
Uma ferramenta muito poderosa de autoconhecimento é o Eneagrama. Esse recurso milenar tem como uma de suas aplicações o estudo de nove tipos de personalidade. A partir de descrições detalhadas não só dos comportamentos, mas também dos motivadores desses comportamentos, cada pessoa costuma se identificar principalmente com um tipo – não é preciso que um terapeuta, coach ou psicólogo lhe diga isso. É um instrumento de autodiagnóstico de suas motivações e fixações. Essa autoavaliação tende a aumentar a confiança no Eneagrama e, consequentemente, o compromisso com o próprio desenvolvimento. Afinal, não foi outra pessoa que descreveu como ela é, mas sim, ela mesma reconhecendo-se.
Por meio do Eneagrama, descobrimos que enxergamos o mundo por um modelo repetitivo. Esse modelo, por sua vez, explica por que costumamos agir de uma ou outra maneira. Cada um dos nove Eneatipos é associado a um vício emocional. São eles: a ira, o orgulho, a vaidade, a inveja, a avareza, o medo, a gula, a luxúria e a preguiça. A partir do momento em que você percebe que seu funcionamento inclui uma dessas neuroses repetitivas, que o leva sempre aos mesmos caminhos e soluções, provavelmente respeitará mais os outros, pois entenderá que eles também são assim, cada um movido por seus padrões repetitivos e automáticos.
Na minha opinião, dois dias de trabalho de Eneagrama equivalem a um ano de terapia. Tem seu lado bom, pois o indivíduo percebe muito sobre si mesmo em um tempo curto. Mas tem seu lado negativo, já que nem todos estão prontos para encarar a si mesmos de maneira tão objetiva. Quem busca autoconhecimento deve estar preparado para sofrer, rever seu modo de pensar, identificar problemas e ainda descobrir como contorná-los. Autoconhecimento é conhecer os próprios limites, saber o que é possível – e o que não é possível – esperar e oferecer para si mesmo e para o mundo.
Mas não pense que, ao descobrir de que Eneatipo você é, vai se entender na hora e pronto. A partir dessa descoberta, você deve observar seus padrões e trabalhar para sair do looping de repetição viciada. Não é porque eu sou do tipo “ira” que vou justificar meus atos violentos apenas pelo Eneatipo. A indicação é entender por que é assim e o que pode fazer a partir dessa consciência.
Claudio Naranjo, psiquiatra chileno e um dos mestres ocidentais do Eneagrama, tem uma frase que cabe muito ao processo de autoconhecimento: “As pessoas são melhores quando compreendem a si mesmas”. Eu concordo com ele. Quando nos conhecemos e compreendemos o que está por trás de nossas ações, paramos de culpar os outros, o mundo e até nós mesmos pelas atitudes que tomamos. O processo de autoconhecimento permite que cada um se responsabilize por completo pela própria vida – o que pode assustar muita gente, mas é fundamental para quem quer compreender mais de si e do mundo.
Eu acredito que, no final da jornada do autoconhecimento, começa um caminho de autoaceitação e de autocompaixão: “Ok, esse sou eu. Agora, o que eu posso fazer conhecendo meus limites e meus padrões repetitivos? Como posso ser melhor”? Muitas vezes, a pessoa pode não gostar do “novo eu” que está conhecendo. Aceitar-se e decidir o que fazer com o que se é, é muito melhor do que tentar mudar.
Uma dica para quem quer saber se está no caminho certo para se conhecer melhor é prestar atenção se está sofrendo menos com seus padrões repetitivos automáticos, como comer mais do que deveria, agir impulsivamente etc. No meu trabalho de autoconhecimento, pude me reconciliar comigo mesmo, com o mundo e com os outros. Ao me conhecer profundamente, passei a ter a sensação de que estou fazendo minhas escolhas e não mais sendo carregado pela situação. O mais importante, no processo do autoconhecimento, é eu estar em paz comigo mesmo.
Trackbacks/Pingbacks